A nossa noite dos cristais

Imagem: Manifesto Coletivo
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por LUIZ WERNECK VIANNA*

No dia 8 abateram-se as vidraças dos palácios de Brasília com a mesma fúria com que as hordas nazistas, em 1938

O poeta Ferreira Gullar costumava dizer que seus poemas nasciam do espanto a que era acometido diante dos incidentes da vida, daí lhe viria a inspiração em que o inesperado deflagrava nele o impulso para fixar num poema a sua percepção do que sentia sobre a experiência vivida. Ferreira Gullar nos deixou uma obra genial, mas o tamanho do espanto que sentimos com os fatos calamitosos desse inesquecível dia 8 de dezembro que não abandonam a nossa memória não nos têm conduzido às sendas da criação, e já se ouvem vozes que nos sugerem ir em frente, passar um pano e voltarmos ao regaço do cotidiano de sempre.

O dia 8 de dezembro foi a data da profanação do que havia de sagrado entre os brasileiros no culto de suas tradições e seu projeto de futuro, sempre reiterado de seguir em frente na realização dos ideais civilizatórios de que Brasília, saída das mãos de Oscar Niemeyer e de Lucio Costa como projeto sinalizador da utopia brasileira de realizar nos trópicos pela obra de um país miscigenado uma cultura democrática e singular. Os palácios de Brasília, as sedes dos três poderes republicanos, não eram separados das vistas do público por muros, mas por vidros a fim de afirmar os ideais da transparência do poder. Neste famigerado dia 8 abateram-se as vidraças dos palácios de Brasília com a mesma fúria com que as hordas nazistas, em 1938, levaram a efeito um pogrom num bairro judeu destruindo suas lojas.

Seu propósito era o de colapsar a sede do poder democrático recentemente investido a fim de impedir a realização dos seus fins declarados de ruptura com uma história nascida da relação monstruosa entre o latifúndio e a escravidão, que preservada em seus fundamentos de exclusão, encontrou lugar nos processos de modernização autoritária que nos trouxeram aos dias de hoje. A tentativa criminal foi abortada, mas antes disso ela conspurcou e maculou o que dava sentido à nossa história e alento para seguir seu curso.

Os alemães, depois de 1945 com a derrota do nazismo, acertaram suas contas com os sicários que a tinham dissociado da sua rica história cultural no Tribunal de Nuremberg. Aqui, e pelas mesmas razões, é imperativo levar aos tribunais todos os que atentaram por ações ou omissões contra a nossa incipiente democracia. Qualquer tergiversação nessa linha deixa os flancos abertos para recidivas do fascismo que já encontrou as brechas em nossa sociedade para se infiltrar, que não se restringem às ocupações de posições de poder, mirando com igual intensidade as interpretações sobre o sentido da nossa história que vinham animando a construção da nossa democracia, do que foi exemplar a elaboração da Carta de 1988.

Tais interpretações que foram se sucedendo e se retroalimentando desde José Bonifácio, Euclides da Cunha e tantos outras que imediatamente as seguiram, encontraram ressonância na ensaística moderna como nas obras de Sérgio Buarque de Holanda, Raymundo Faoro, Roberto Schwarz, Rubem Barbosa Filho, para citar apenas alguns, que tentaram desvendar quais poderiam ser os rumos para uma sociedade cujo ponto de partida, o atraso ibérico, lhe era tão pouco propício. Cada qual, a seu modo, interpretava o nosso destino como vocacionado para uma intervenção de ruptura com o nosso passado.

O avanço continuado do moderno, antípoda do processo de modernização com que a ordem burguesa abriu seu caminho entre nós pelo autoritarismo político e a exclusão social, pôs em cheque a reprodução do passado, sustentado na ordem burguesa pelos seus vínculos com a ordem patrimonial que lhe garantia no plano da política. O regime Bolsonaro significou em todos os sentidos, político, cultural, econômico, um levante das forças do passado a fim de obstar a passagem do moderno, e foram elas que estavam presentes nos acampamentos em que se gestava o assalto à democracia brasileira, quer financiando suas ações, quer nas concepções dos seus movimentos, quer arrostando como massa de apoio setores retardatários da sociedade.

Esconjurar nosso espanto diante da calamidade a que fomos expostos, saída das próprias entranhas da nossa sociedade, é obra coletiva a ser desencadeada por um julgamento público, quando se investigue as origens presentes e remotas do mal que nos ronda, sempre com a inspiração de que jamais o dia 8 de dezembro ocorra mais uma vez.[1]

*Luiz Werneck Vianna é  professor do Departamento de Ciências Sociais da PUC-Rio. Autor, entre outros livros, de A revolução passiva: iberismo e americanismo no Brasil (Revan).

Nota


[1] As ciências sociais têm um lugar de importância nesse Tribunal de Nuremberg, e seu papel é o de encontrar explicações para os espantosos acontecimentos que abalaram a república e os comportamentos igualmente espantosos dos seus personagens.

O site A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
Clique aqui e veja como 

Veja neste link todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

__________________
  • Razões para o fim da greve nas Universidade Federaisbancos 16/05/2024 Por TADEU ALENCAR ARRAIS: A nova proposta do Governo Federal anunciada dia 15 de maio merece debate sobre continuar ou não a greve
  • O negacionismo ambiental e a inundação de Porto Alegreporto alegre aeroporto alagado 14/05/2024 Por CARLOS ATÍLIO TODESCHINI: Porto Alegre tem o melhor sistema de proteção contra cheias do Brasil. É considerado um “minissistema holandês”. Por que esse sistema falhou em sua função de evitar que a cidade fosse alagada?
  • A mão de OzaJoao_Carlos_Salles 14/05/2024 Por JOÃO CARLOS SALLES: O dever do Estado brasileiro e a universidade contratada
  • A universidade operacionalMarilena Chauí 2 13/05/2024 Por MARILENA CHAUI: A universidade operacional, em termos universitários, é a expressão mais alta do neoliberalismo
  • Pensar após GazaVladimir Safatle 08/05/2024 Por VLADIMIR SAFATLE: Desumanização, trauma e a filosofia como freio de emergência
  • O cavalo Caramelocavalo caramelo 15/05/2024 Por LEONARDO BOFF: Há que se admitir que nós não temos respeitado os direitos da natureza com seu valor intrínseco, nem posto sob controle nossa voracidade de devastá-la
  • SUS, 36 anos – consolidação e incertezasPaulo Capel Narvai 15/05/2024 Por PAULO CAPEL NARVAI: O SUS não foi o “natimorto” que muitos anteviram. Quase quatro décadas depois, o SUS está institucionalmente consolidado e desenvolveu um notável processo de governança republicana
  • Por que estamos em greve nas Universidades federais?Gatinho 09/05/2024 Por GRAÇA DRUCK & LUIZ FILGUEIRAS: A greve também busca disputar os fundos públicos com o capital financeiro e forçar o governo a se desvencilhar da tutela desse mesmo capital e de grupos políticos de direita
  • A greve nas universidades e institutos federais não…caminho tempo 17/05/2024 Por GRAÇA DRUCK & LUIZ FILGUEIRAS: As forças de esquerda e democráticas precisam sair da passividade, como que esperando que Lula e o seu governo, bem como o STF resolvam os impasses políticos
  • Mentira em massa como performance políticadesprezo imagem falsa 15/05/2024 Por TALES AB´SÁBER: O desprezo por qualquer um que não seja isso: um grupo neofascista mentindo em massa, gozando de toda lei do outro, porque existe

AUTORES

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES